segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Helena de porcelana

Pedro gostava de encará-la no fundo do olho, para manter sempre viva na memória a imagem daquelas ires grandes e cristalinas, de um castanho chocolate. Algo naquele belo olhar vítreo, porém, o incomodava: sua semelhança com a forma estática com que as bonecas de louça de Helena, distribuídas por três prateleiras dispostas na parede de seu quarto, o olhavam.

Aquela coleção, mantida por três gerações, havia sido iniciada pela bisavó da namorada. Na infância, Helena mal ousava brincar com suas bonecas, a fim de preservá-las impecáveis em seus vestidos rendados, seus cabelos cacheados e suas faces de porcelana, as quais não apresentavam nem sinal de deterioração.

Para Pedro, algo tétrico se escondia naquelas feições angelicais. Toda vez que abria a porta do quarto da namorada, um calafrio de receio descia de sua espinha até os calcanhares, arrepiando todos os pelos de seu corpo. Era envolvido por uma estranha insegurança quando, ao acordar no meio da noite, batia os olhos no conjunto de criaturas pálidas, cuja expressão vigilante o fazia instintivamente apertar o abraço com o qual acolhia o corpo adormecido da namorada. 

Pedro vivia ensaiando argumentos para convencer Helena a mudar a localização daquelas bonecas, ou, na melhor das hipóteses, livrar-se delas logo de uma vez. Todavia, a forma encantada e carinhosa com que ela se referia a coleção indicava que seria incapaz de desfazer-se dela. Para Helena, tudo não passava de uma implicância supersticiosa, uma bobagem ou até consequência dos ciúmes desmedido de Pedro, que não poupava nem seres inanimados. 

Houve então uma briga decisória. As exaustivas discussões, sempre motivadas pela paixão possessiva de Pedro por Helena, motivaram-na a por um fim definitivo no relacionamento. A reação de Pedro foi até sutil, de uma raiva contida, que guardava uma vingança estrategicamente canalizada. 
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Casa vazia, cujo único som vinha de cortinas se remexendo, devido a força do vento proporcionado por janelas entreabertas, o qual também intensificava ainda mais o cheiro de jasmim e limpeza dos cômodos. Cheiro de Helena. Pedro subia lentamente a escada, pisando firme no assoalho, girando pelo cabo o martelo que carregava em uma das mãos. Rodou delicadamente na fechadura a cópia que havia feito da chave do quarto da namorada, a imprudência mais eficiente que já havia cometido. 


Mirou as três prateleiras, cada uma coberta por uma fila indiana de trinta e duas malditas bonecas, o encarando docemente. Quase podia ouvir os apelos súplices de suas vozes infantis quando deu a primeira martelada, derrubando a boneca da ponta esquerda da primeira prateleira. Suas colegas de fila tiveram o mesmo destino, em efeito dominó. 

Pedro voltou-se para o guarda-roupa, escondeu-se dentro dele, fechou as portas deixando apenas uma abertura suficiente para que enxergasse o quarto. Sua vingança não estaria completa sem ver a reação da namorada.
 

Helena estranhou não precisar girar a chave na fechadura. Não era seu costume deixar o quarto aberto. Quando apertou a maçaneta, uma sensação elétrica correu por seu braço. Afastou lentamente a porta, o suficiente para Pedro, absorto em seus pensamentos vingativos, não notar sua presença. 

Um grito sobrenatural de horror e dor despertou o jovem de seus devaneios. Alguns segundos de absoluto e pesado silêncio. Pedro afasta lentamente uma das portas do guarda-roupa.


Três prateleiras de bonecas de porcelana impecáveis encaravam um corpo ferido, manchado de sangue e hematomas, estendido pelo chão do quarto. O corpo de Helena.  

14 comentários:

  1. Chocante e admirável. É assim que podemos ver o valor que cada artefato tem pra alguém, por mais simples que seja. Muito bom teu texto! Curioso e no mínimo exótico.

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  2. Não esperava por esse final, mas me agradou.

    Thoughts-little-princess.blogspot.com

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  3. Como não amar um texto assim? ^.^

    Perfeito!

    grande abraço

    http://princessandfashion.wordpress.com

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  4. CAAAAAAAAARA isso foi foda. Sério, foi muito foda.
    Eu imaginava que pudesse ser algo assim. Achei que Hellena também fosse uma das bonecas, e que na verdade a coleção fosse de Pedro e ele fosse louco. Pois é, meus finais sempre acaba em disturbios psicologicos - e foi por isso que o seu me surpreendeu. Uma maldição. Não é o tipo de coisa que eu escreveria, e nem esperaria ler rs.
    Adorei, de verdade. Desde a construção do texto, até a ideia central, e até a personalidade de pedro. Eu amei o Pedro.

    obs: bonecas de porcelana me dão medo.

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  5. Ok, eu imaginava um final macabro assim que li das bonecas de porcelana. Mas isso me pegou de surpresa. Pensei que a namorada viraria uma boneca (previsível demais?). E o namorado vai ser culpado: porque estava com o martelo na mão. Haha. Genial.

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  6. Nossa! Que final surpreendente e assustador. Pior é que eu nunca gostei de bonecas, sempre morri de medo delas.

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    1. Ah, acho que Foo Fighters tem uma "pegada" um pouco mais "dinâmica" que Black Rebel Motorcycle Club. Não sei como explicar, na verdade rsrsrs, mas para mim são diferentes.

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  7. ME CAGAY. Tenho medo de bonecas, inclusive li esses dias um post num lugar sobre uma brincadeira de espíritos encarnarem em bonecas, um horror, até dormi mal à noite (sou cagona) hahaha. ESSE FINAL FOI AMAZING, arrepiei, nunca esperava. clap, clap, clap.

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  8. só eu q nao entendi??? ela foi morta pelas bonecas? ela morreu quando viu q as bonecas estavam quebradas pq ela er ana verdade uma boneca? to confusaaaaaa, helppp!!! kkkkkk

    bjss
    http://gipsyyy.blogspot.com.br/

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  9. Seus textos sempre incríveis, moça! Mas fiquei imaginando se a história realmente tem algo sobrenatural em que as bonecas seriam a "vida" de Helena, como uma maldição/amuleto, ou se Pedro, talvez por uma possessividade doentia, em um surto psicótico possa ter assassinado Helena e, só após voltar ao seu estado normal ("Um grito sobrenatural de horror e dor despertou o jovem de seus devaneios."), percebeu o que tinha feito. Não sei se o intuito foi causar dúvida, deixar no ar o conflito entre o sobrenatural e o psicológico, mas eu senti bastante isso.

    http://creepy-littlethings.blogspot.com.br/

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  10. Deixa eu te contar, tem uns blogs por aqui que eu gosto tanto dos textos, admiro tanto que tenho meio que vergonha de comentar. Às vezes eu comento, quase sempre com dificuldade, e outras eu nem mostro minha caras. E eu acho que seu blog ta se tornando um desses, porque olha, li esse conto há um tempão, mas lembro que fiquei de boca aberta e não me vieram palavras. Mas, lembrando agora, resolvi dar o ar das graças e dizer quão incrível esse texto foi/é. Nossa, quando terminei de ler, depois de me surpreender com esse fim, eu fiquei pensando, gente, queria ter essa criatividade, queria escrever assim. To apaixonada por esse conto, Beatriz, nossa. Parabéns mesmo!
    Beijoss

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  11. incrível.
    e triste. Cabe uma análise: as vezes as pessoas querem mudar algo que é para elas um defeito, mas sem aquele defeito, somos nada.

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  12. Eitaaa, queria saber o que aconteceu com o garoto rsrs

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  13. Gostei muito! Principalmente pq tenho medo de bonecas, manequins, bonecos de ventríloquo e toda a sorte de porcarias dessas xD lembro que quando era pequena, minha vó enfileirava as bonecas assim, e quando eu ia dormir na casa dela virava todas de costas, pra elas não ficarem me olhando.

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