sábado, 13 de dezembro de 2014

A sopa

Maria dissolveu o conteúdo do sache na água, o pó flutuou até o fundo da panela, enquanto os pedaços de macarrão subiam para superfície, boiando. Riscou o fósforo deixando a chama dançar numa luz laranja e azul, até quase encostar-se à ponta de seus dedos, antes de acender uma das bocas do fogão na qual iria colocar a panela.

Com a colher de pau mexia lentamente a mistura, o líquido tornando-se cada vez mais espesso. Levantou os olhos para aquela cena que lhe era tão habitual quanto deprimente: a família reunida.

O pai estava na cozinha, sentado à mesa, debruçado sobre o prato de comida. O arroz escapava da boca que mastigava ferozmente os pedaços de carne, o feijão, a batata, as sobras do modesto almoço das quais ele exigia maior parte. A regata branca suada, esticada para caber naquele corpo gordo e gigantesco, mal cobrindo a barriga peluda. 

“Monstro.” 

 Arrotou sonoramente. Satisfeito, jogou seu prato e talheres na pia, e encarou a filha com seus olhos pequenos esmagados pelas bochechas pocinhas. Com seu olhar ameaçador indicou quem seria responsável pela louça. Derrubou-se no sofá da sala e em minutos, seu ronco de besta já ecoava pelo pequeno cômodo.

A mãe e o irmão mais novo permaneciam com os olhos vidrados na televisão, indiferentes a presença grotesca do patriarca, a claridade florescente iluminando suas feições inexpressivas, estáticas. Pareciam dois espectros presos eternamente naquela casa, assistindo a realidade, dia após dia, existindo, sem manifestar qualquer sinal de vontade, sentimento, pensamento... 

 O rosto da mãe era comprido, magro e ossudo. A pele seca, pontilhada por manchas de sol, enrugava em volta dos olhos grandes de um azul nublado. Quando por sorte Maria conseguia olhar no fundo daqueles olhos, percebia um indício de beleza que algum dia quis aparecer, mas fora sufocado por um casamento precoce e indesejado. A mãe sorria muito pouco, e quando o fazia, não chegava nem a mostrar os dentes miúdos. 

 Trovejou. Uma tempestade repentina fazia tremer aquela pequena e velha casa no meio do nada. A sopa começava a ferver, borbulhando. Maria voltou-se para janela. No vidro pontilhado de gotas de chuva, deparou-se com seu reflexo, iluminado por trovões que cortavam o céu no meio. Os olhos da mãe se desviaram da TV e se voltaram para figura da filha, que a encarava. A mais velha sorriu, como se adivinhasse e abençoasse a ideia que surgiu na mente de Maria. A jovem desligou o fogo. Soltou bruscamente a colher na panela. 

 O pai entreabriu os olhos a tempo de ver a garota abrir a porta da cozinha e entrar na tempestade. Virou o corpo para o outro lado.

 “Estou sonhando.” 

Os pés descalços de Maria afundavam na grama alta e úmida, a chuva encharcando a roupa, colando seus cabelos no rosto, congelando o corpo que se sentia vivo como nunca. Ela correu com os olhos fechados, sem se importar com a chuva, com o vento, com seus pés descalços, que não perceberam quando a grama deu lugar ao asfalto. Maria só notou o carro segundos antes de ser atropelada. 

O motorista, apavorado, se aproximou da menina a tempo de ver seus lábios soprarem uma última palavra, a qual ele não pode distinguir. 

 “Livre.”


10 comentários:

  1. Boa noite *.* Fiquei tentado a comentar este conto. Interpretei ele de maneiras distintas, cheguei a vê-lo como uma simples filosofia de libertação, encontro com si mesmo, mas no fundo é visível que de todos os significados por trás dessas palavras, o 'livre' tem muitas vertentes.

    Agora comentando como leitor e expondo a imaginação:
    Eu seria mais feliz se ela matasse a família, mas seu final foi justo rs

    Boas palavras
    xoxoxo

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  2. Adorei!
    Fiquei surpresa com o final e estou com vontade de sopa ^^

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  3. Quem tem uma vida tão mesquinha, pacata e sem grandes possibilidades pode mesmo desejar, literalmente, a morte para uma liberdade nunca conseguida na vida real. Mas essa morte pode ser outra, metafórica. O que me dá esperanças toda vez que acredito me encontrar em uma vida mesquinha ou limitada.
    Muito bem escrito seu texto.

    Beijos
    http://mon-autre.blogspot.com.br/

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  4. Maravilhoso o texto. A figura do pai me deu ânsia de vômito, mas pior que isso só a apatia da mãe. Incomoda pessoas serem infelizes sem mexer um músculo pra mudar. Pior: a sensação de, mesmo mudando, a infelicidade ainda estar lá. Lindo o conto, de verdade, muitíssimo bem escrito. Beijos!
    http://www.canseidesernerd.com/

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  5. As vezes, morrer é a melhor saída. É o que resta pra ter paz. Triste.
    Você escreve muito bem, palmas.

    http://www.novaperspectiva.com/

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  6. Conto de uma força descomunal.
    Você traça detalhes que parecem comuns, mas olhando no conjunto, são fundamentais para que o texto saia do belo para o brilhante.

    Que força. Parabéns.

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  7. Ela vivia, mas presa cotidianamente numa rotina desgraçada...
    É triste isso. E muito mais comuns do que imaginamos, infelizmente não se restringem somente aos contos.

    Quase não tenho mais tenho para o blog, mas cá estou dando uma passadinha e visitando meus preferidos.
    Como está, Beatriz? Espero que bem.
    Beijos!

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  8. Que conto maravilhoso.
    eu acho que todas as pessoas se identificam com ele. Graças a Deus hoje eu não vivo isso, mas a vida te puxa para a rotina todos os dias, e você decide se vai sair dela.
    Quantas pessoas não estao presas em vidas assim?
    triste, porém real e bonito.

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  9. Que forte!Me deu certo desconforto ler, mas exatamente por ter sido tão bem elaborado e escrito!

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  10. OI! :D
    Me vi muito no seu texto! Já pensei muito que, às vezes, a morte é a unica saída rápida pra algumas coisas. Mas se a gente não desiste, acho que podemos ter uma outra solução!
    Saudades daqui, seu blog é o unico que me lembro de voltar pra ler!
    Beijos! :D

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