Maria dissolveu o conteúdo do sache na água, o pó flutuou até o fundo da panela, enquanto os pedaços de macarrão subiam para superfície, boiando. Riscou o fósforo deixando a chama dançar numa luz laranja e azul, até quase encostar-se à ponta de seus dedos, antes de acender uma das bocas do fogão na qual iria colocar a panela.
Com a colher de pau mexia lentamente a mistura, o líquido tornando-se cada vez mais espesso. Levantou os olhos para aquela cena que lhe era tão habitual quanto deprimente: a família reunida.
O pai estava na cozinha, sentado à mesa, debruçado sobre o prato de comida. O arroz escapava da boca que mastigava ferozmente os pedaços de carne, o feijão, a batata, as sobras do modesto almoço das quais ele exigia maior parte. A regata branca suada, esticada para caber naquele corpo gordo e gigantesco, mal cobrindo a barriga peluda.
“Monstro.”
Arrotou sonoramente. Satisfeito, jogou seu prato e talheres na pia, e encarou a filha com seus olhos pequenos esmagados pelas bochechas pocinhas. Com seu olhar ameaçador indicou quem seria responsável pela louça. Derrubou-se no sofá da sala e em minutos, seu ronco de besta já ecoava pelo pequeno cômodo.
A mãe e o irmão mais novo permaneciam com os olhos vidrados na televisão, indiferentes a presença grotesca do patriarca, a claridade florescente iluminando suas feições inexpressivas, estáticas. Pareciam dois espectros presos eternamente naquela casa, assistindo a realidade, dia após dia, existindo, sem manifestar qualquer sinal de vontade, sentimento, pensamento...
O rosto da mãe era comprido, magro e ossudo. A pele seca, pontilhada por manchas de sol, enrugava em volta dos olhos grandes de um azul nublado. Quando por sorte Maria conseguia olhar no fundo daqueles olhos, percebia um indício de beleza que algum dia quis aparecer, mas fora sufocado por um casamento precoce e indesejado. A mãe sorria muito pouco, e quando o fazia, não chegava nem a mostrar os dentes miúdos.
Trovejou. Uma tempestade repentina fazia tremer aquela pequena e velha casa no meio do nada. A sopa começava a ferver, borbulhando. Maria voltou-se para janela. No vidro pontilhado de gotas de chuva, deparou-se com seu reflexo, iluminado por trovões que cortavam o céu no meio.
Os olhos da mãe se desviaram da TV e se voltaram para figura da filha, que a encarava. A mais velha sorriu, como se adivinhasse e abençoasse a ideia que surgiu na mente de Maria. A jovem desligou o fogo. Soltou bruscamente a colher na panela.
O pai entreabriu os olhos a tempo de ver a garota abrir a porta da cozinha e entrar na tempestade. Virou o corpo para o outro lado.
“Estou sonhando.”
Os pés descalços de Maria afundavam na grama alta e úmida, a chuva encharcando a roupa, colando seus cabelos no rosto, congelando o corpo que se sentia vivo como nunca. Ela correu com os olhos fechados, sem se importar com a chuva, com o vento, com seus pés descalços, que não perceberam quando a grama deu lugar ao asfalto.
Maria só notou o carro segundos antes de ser atropelada.
O motorista, apavorado, se aproximou da menina a tempo de ver seus lábios soprarem uma última palavra, a qual ele não pode distinguir.
“Livre.”