quarta-feira, 23 de abril de 2014

Fugare Urbem


Um agradecimento especial ao Arcadismo


Lá estava no terminal rodoviário. Sento no chão, ao lado da plataforma em que meu ônibus iria parar. Tiro um livro de semiótica da bolsa, leio uma página entre uma reflexão e outra. Não estava refletindo sobre o livro, porque o urbano ocupava todos meus pensamentos. Não me culpem por isso. Há uma beleza na melancolia da cidade que só os muito mentalmente ociosos conseguem perceber. E a ociosidade da mente é um privilégio (ou um defeito) de essência, não se adquire ou liquida.
Na minha frente um gordinho toma milkshake de ovomaltine, e um cara esquisito não para de me encarar. Não há ameaça ou malícia em seu olhar, apenas aquele tipo de interesse incômodo ao objeto observado. Principalmente quando se é objeto.
Uma garota se encosta na porta, se agacha ao meu lado. Começa a vasculhar a bolsa, e eu queria parecer tão bonita e descolada com uma camisa larga branca, jeans, tênis colorido e cabelo Joãozinho como o dela. Fico imaginando se ela é aquele tipo de pessoa sem pouso, se é uma groupie que viaja de cidade em cidade buscando o músico com quem ficou uma noite e se apaixonou perdidamente, se é integrante a integrante de uma trupe teatral que se emancipou aos 14 porque a família não apoiava sua escolha profissional. Criei mil identidades para a menina do cabelo curto, entre o tempo dela achar seus documentos e correr para pegar algum ônibus.
Senti vontade de trocar a passagem, de pegar qualquer outro ônibus que me desviasse do meu destino premeditado e conhecido. Senti vontade de seguir a banda do músico pelo qual certa vez me apaixonei, ou um ator de teatro, de calça xadrez e chapéu coco, que há algum tempo sorriu pra mim naquele mesmo terminal rodoviário. Senti vontade de mudar de identidade, de caminho, de rumo. De perder o rumo.
O ônibus chega, abro o livro de semiótica que havia guardado na bolsa, abro a janela. Fecho o livro, pego um bloco, começo a escrever. A vontade não passa.
Penso, logo fujo.

     

3 comentários:

  1. As vezes o que nos falta é coragem. As vezes sabemos o que fazer, sabemos que aquela é a melhor opção, embora a mais complicada, porém acabamos optando pelo que nos convém.
    Mentes ociosas, ao meu ver, são sim uma qualidade. Porque em meio a todo esse caos da cidade, acabamos por adquirir mentes barulhentas, fugazes e quem sabe pouco eficazes.
    Só pra constar, adoro seus textos.

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  2. Esse foi um devaneio muito criativo, devo dizer. Também tenho ideias sobre a identidade das pessoas que encontro no ônibus. É estranho. Não gosto muito de encarar os outros, então faço isso escondido. Ah, eu queria ter um bloquinho nessas horas de "inspiração". Tomara que você sempre tenha um caderno à mão para isso, quero ler mais posts por aqui

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  3. Fugindo da cidade! :D Adoro as expressões latinas do arcadismo. ;)

    Que bonita essa história. Meio que me senti um pouco dentro dela, observando as ações dos personagens ao redor e da própria protagonista.
    A gente tem essa sensação de querer mudar o rumo, pra ver o que acontece. Queria ter coragem.

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