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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Cenouras e Cigarros


Ela picava as cenouras na tabua de madeira com exímia precisão, resultante dos anos realizando mecanicamente a função. Ele se escondia atrás do jornal aberto e entre um ou outro gole da xícara de um café fumegante. Forte e amargo, como o temperamento de quem o degustava. 

Vez ou outra baixava a folha para observar os gestos sistemáticos da esposa. Naquele momento, só tinha uma certeza com relação a ela: não a amava mais. Aquelas mãos, agora tão habilidosas para a culinária, já não possuíam, nas palmas, o calor e a ternura da desastrada namorada de adolescência. O tempo, em um ato de irônica generosidade, quase não maculou a beleza das miúdas feições de Alícia, mas certificou-se de retirar de seus olhos acinzentados, a luminosa alegria que costumava cintilar.

Desde seu décimo quinto aniversário de casamento não faziam mais amor. Quando a tinha sob ele, para cumprir as obrigações matrimoniais, Mauro sentia a indiferença dela, o desprezo, tão acentuados naquele momento como em nenhum outro. Denunciados por seus olhos forçosamente focados em algo além do teto, talvez além do céu. Além de toda aquela vida.

Mauro coçou a barriga, terminou o café e tateou a mesa a procura do maço de cigarros. Recolheu a embalagem. Constatou a ausência do tabaco.
_ Vou comprar cigarros. – anunciou. Como resposta, Alícia lhe deu ombros.

Quantos significados implícitos cabem em uma sentença tão curta quanto “Vou comprar cigarros”? Na dita por Mauro cabiam desgostos calados. Calados por uma vida inteira.
Durante o trajeto até a banca de jornal mais próxima, o qual já tinha há anos se habituado a fazer, ele via o cotidiano a sua volta passar em câmera lenta, pois sua mente estava sobrecarregada com o peso de uma ideia.

Estendendo o maço de cigarros, o dono da banca ficou a espera da iniciativa do homem parado, olhando algum ponto entre o amontoado de revistas velhas, ou algo além dele. Após um pigarro do atendente, Mauro abandonou o devaneio, recolheu o troco, o maço, e prendendo um cigarro entre os lábios, começou o caminho de volta.

“Mas e se ele deixasse Alícia?”. A ideia lhe ocorreu entre o vai e vem de transeuntes, típico do horário de pico daquela avenida, provavelmente roubada de outra mente frustrada com o conjugue.

Afinal, os filhos já estavam criados, eram crescidos, senhores de si. Não precisavam de um exemplo de família perfeita. Já haviam construído suas famílias, suas felizes famílias. Pensou na filha, Manuela, que se casou com um japonês aos 18 anos de idade, e há quatro morava no Japão, voltando para o Brasil apenas em datas comemorativas. Por insistência do marido. Pensou em Paulo, viajando o mundo com sua portuguesa, de cabelos cor de fogo, um pouco mais jovem do que ele, Mauro, seu pai, com a qual divida apartamentos e a missão de conhecer o máximo de países e culturas possíveis. Coisas de jovens. E de velhos que se acham jovens.

Pensou em tudo que um dia renunciou para manter aquela família. Nos lugares que poderia ter conhecido, nas oportunidades de emprego recusadas, nos gastos poupados, nas belas mulheres de convidativos olhares maliciosos, cujo convite a traição teve de renunciar. Pois um dia foi um pai de família, e foi amado, por seus filhos e esposa. E amou Alícia, e como amou.

Amou o efeito translúcido de seus olhos lacrimejados, quando aceitou o pedido de casamento. Amou sua pele delicada, imaculada, coberta pela renda da camisola na noite de núpcias. Amou o sorriso que em seus lábios se formou ao segurar, pela primeira vez, o primogênito nos braços.

Verdadeiramente, ainda a amava, e ao dar-se conta disso, repudiou a ideia que posteriormente o recorreu. Voltaria para casa, abraçaria a companheira, levaria Alícia ao cinema, lhe agradaria com pipoca doce, sua favorita, para lembrar-lhe dos tempos de leveza e juventude. Os quais ele também havia esquecido.

Abriu a porta da cozinha. Eufórico, demorou para encaixar a chave na fechadura. Encontrou o cômodo exatamente como o deixara, à meia hora atrás, para comprar cigarros. Permanecia na pia, a tábua com cenouras fatiadas, a cor vibrante reluzindo no sol da manhã, refletido por uma faca espetada, sob a qual havia um bilhete. Um bilhete de despedida.