Ela picava as cenouras na tabua de madeira
com exímia precisão, resultante dos anos realizando mecanicamente a função. Ele
se escondia atrás do jornal aberto e entre um ou outro gole da xícara de um
café fumegante. Forte e amargo, como o temperamento de quem o degustava.
Vez ou outra baixava a folha para observar os
gestos sistemáticos da esposa. Naquele momento, só tinha uma certeza com
relação a ela: não a amava mais. Aquelas mãos, agora tão habilidosas para a culinária,
já não possuíam, nas palmas, o calor e a ternura da desastrada namorada de
adolescência. O tempo, em um ato de irônica generosidade, quase não maculou a beleza
das miúdas feições de Alícia, mas certificou-se de retirar de seus olhos acinzentados,
a luminosa alegria que costumava cintilar.
Desde seu décimo quinto aniversário de
casamento não faziam mais amor. Quando a tinha sob ele, para cumprir as
obrigações matrimoniais, Mauro sentia a indiferença dela, o desprezo, tão
acentuados naquele momento como em nenhum outro. Denunciados por seus olhos forçosamente
focados em algo além do teto, talvez além do céu. Além de toda aquela vida.
Mauro coçou a barriga, terminou o café e
tateou a mesa a procura do maço de cigarros. Recolheu a embalagem. Constatou a
ausência do tabaco.
_
Vou comprar cigarros. – anunciou. Como resposta, Alícia lhe deu ombros.
Quantos significados implícitos cabem em uma
sentença tão curta quanto “Vou comprar cigarros”? Na dita por Mauro cabiam
desgostos calados. Calados por uma vida inteira.
Durante
o trajeto até a banca de jornal mais próxima, o qual já tinha há anos se
habituado a fazer, ele via o cotidiano a sua volta passar em câmera lenta, pois
sua mente estava sobrecarregada com o peso de uma ideia.
Estendendo o maço de cigarros, o dono da
banca ficou a espera da iniciativa do homem parado, olhando algum ponto entre o
amontoado de revistas velhas, ou algo além dele. Após um pigarro do atendente,
Mauro abandonou o devaneio, recolheu o troco, o maço, e prendendo um cigarro
entre os lábios, começou o caminho de volta.
“Mas
e se ele deixasse Alícia?”. A ideia lhe ocorreu entre o vai e vem de
transeuntes, típico do horário de pico daquela avenida, provavelmente roubada
de outra mente frustrada com o conjugue.
Afinal,
os filhos já estavam criados, eram crescidos, senhores de si. Não precisavam de
um exemplo de família perfeita. Já haviam construído suas famílias, suas
felizes famílias. Pensou na filha, Manuela, que se casou com um japonês aos 18
anos de idade, e há quatro morava no Japão, voltando para o Brasil apenas em
datas comemorativas. Por insistência do marido. Pensou em Paulo, viajando o
mundo com sua portuguesa, de cabelos cor de fogo, um pouco mais jovem do que
ele, Mauro, seu pai, com a qual divida apartamentos e a missão de conhecer o
máximo de países e culturas possíveis. Coisas de jovens. E de velhos que se
acham jovens.
Pensou
em tudo que um dia renunciou para manter aquela família. Nos lugares que poderia
ter conhecido, nas oportunidades de emprego recusadas, nos gastos poupados, nas
belas mulheres de convidativos olhares maliciosos, cujo convite a traição teve
de renunciar. Pois um dia foi um pai de família, e foi amado, por seus filhos e
esposa. E amou Alícia, e como amou.
Amou
o efeito translúcido de seus olhos lacrimejados, quando aceitou o pedido de
casamento. Amou sua pele delicada, imaculada, coberta pela renda da camisola na
noite de núpcias. Amou o sorriso que em seus lábios se formou ao segurar, pela
primeira vez, o primogênito nos braços.
Verdadeiramente,
ainda a amava, e ao dar-se conta disso, repudiou a ideia que posteriormente o
recorreu. Voltaria para casa, abraçaria a companheira, levaria Alícia ao
cinema, lhe agradaria com pipoca doce, sua favorita, para lembrar-lhe dos
tempos de leveza e juventude. Os quais ele também havia esquecido.
Abriu
a porta da cozinha. Eufórico, demorou para encaixar a chave na fechadura.
Encontrou o cômodo exatamente como o deixara, à meia hora atrás, para comprar
cigarros. Permanecia na pia, a tábua com cenouras fatiadas, a cor vibrante
reluzindo no sol da manhã, refletido por uma faca espetada, sob a qual havia um
bilhete. Um bilhete de despedida.